Aproximando as comunidades dos decisores públicos

Como parte do Dia Mundial das Cidades 2020, O Dr. Nuno Pinto, Professor de Planejamento e Projeto Urbano, pesquisador do Laboratório de Política e Análise Espaciais do Manchester Urban Institute, Reino Unido, discute como a participação pública no Brasil pode ser mais capaz em ajudar a mudar as cidades no contexto pós-pandêmico.

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A pandemia de COVID-19 inundou a discussão pública com dados, indicadores e modelos para ajudar o desenho de políticas públicas de saúde baseadas em evidência.

O público está agora mais versado em discutir os prós e os contras de aplanar a curva ou usar o indicador R para apoiar, por exemplo, medidas de confinamento. Esta discussão muito intensa sobre dados e evidência tem, possivelmente, um efeito positivo na consolidação do uso de dados, modelos e a sua ciência de base para apoiar processos de tomada de decisão em política pública em geral, aumentado os níveis de engajamento e participação pública.

Nas cidades brasileiras, como no resto do mundo, a participação pública é fundamental para implementar uma agenda duradoura para reduzir as desigualdades urbanas. Brasília é um exemplo em que a inexistência de participação pública na década de 1950 ajudou a que um projeto utópico de cidade falhasse na garantia de uma cidade equitativa, justa. Hoje em dia, essa desigualdade é mais forte do que nunca, e o movimento comunitário (bottom-up) dos coletivos emergiu como componente basilar de uma revolução urbana baseada nas artes, na intervenção social e no urbanismo.

Desigualdade urbana gerada por uma cidade utópica

O planejamento e o projeto urbano de Brasília almejaram, no auge do movimento modernista, criar a cidade racional, o projeto mais próximo do modelo da Ville Radieuse de Le Corbusier alguma vez tentado, em que funções urbanas (governo, educação , economia, forças armadas, etc.) e os indivíduos que trabalham nessas funções foram cuidadosamente localizados para ‘otimizar’ o ideal da cidade funcionalista. No entanto, o voluntarismo benevolente da abordagem top-down do projeto pelo seu criador, o arquiteto Lúcio Costa, e por seus promotores, o Governo do Brasil, foi insuficiente para responder ao requisito claro do programa de criar um farol da modernidade do Brasil: uma cidade de sucesso; limpa; livre de pobreza, problemas sociais e protestos; o resultado foi uma cidade que rapidamente eliminou a possibilidade dos mais pobres ficarem vivendo também na cidade bonita.

Hoje em dia, essa desigualdade é mais forte do que nunca, e o movimento comunitário (bottom-up) dos coletivos emergiu como componente basilar de uma revolução urbana baseada nas artes, na intervenção social e no urbanismo.

Dr Nuno Pinto / Professor de Planejamento e Projeto Urbano

O projeto urbano falhou em criar uma cidade minimamente equitativa. A inexistência de habitação popular para os mais pobres (mais tarde alguma atenção foi dada ao problema), a opção por uma distribuição corporativista da habitação e até o enfoque numa infraestrutura viária que privilegia o automóvel são fatores centrais para a centrifugação de grandes massas de famílias pobres – dos candangos, os trabalhadores migrantes de todo o Brasil que construíram a cidade bonita e que, contra o plano, acabaram se estabelecendo nela – para cidades distantes, algumas planejadas (outras nem tanto) como o Gama, o Sobradinho ou Taguatinga. 

A participação pública é um fator decisivo para criar cidades equitativas. Contudo, no Brasil como no resto do mundo, este era um conceito ausente na década de 1950, se tornando um pouco mais visível e praticado mais tarde com o advento da democracia e a emergência de movimentos de comunidade nas décadas que se seguiram. 

Os Coletivos: a inteligência social ajudando a implementar mudanças na cidade 

Atualmente, a desigualdade em Brasília aumenta rapidamente. Todos os indicadores mostram como renda, educação e acesso aos serviços públicos estão desigualmente distribuídos numa área metropolitana em rápido crescimento. Localmente, grupos comunitários, os coletivos, emergiram e abordam problemas urbanos como mobilidade, urbanismo e infraestrutura através das artes e da intervenção pública, preenchendo espaços vazios nos sistemas comunitários de governança. Contudo, dificilmente os coletivos (e as suas comunidades) têm uma voz realmente ouvida, um lugar na mesa de tomada de decisão.

 Esses grupos comunitários conhecem, com sua experiência e prática locais, as oportunidades, os desafios e os gargalos que impendem em suas comunidades. Eles conhecem a política da cidade, as políticas de desenvolvimento e como estas têm falhado em produzir e implementar no Brasil uma agenda efetiva de redução da pobreza e da desigualdade. O que pode estar faltando aos coletivos é um entendimento mais robusto dos processos que levam às decisões, os passos intermédios no processo de tomada de decisão entre conhecer o problema e tomar decisões políticas para o abordar.

Há espaço para capturar a riquíssima inteligência social dos coletivos e dar-lhe uma simples, inteligível e eficaz robustez técnica, tornando os coletivos agentes de política pública ainda mais qualificados, agentes tão capazes como qualquer outro agente. Dar aos coletivos um lugar na mesa de decisões, com uma voz ouvida por todos. As discussões, quase opressivas, sobre dados, indicadores e modelos durante a pandemia podem contribuir para aumentar a literacia dos coletivos em tomada de decisão e no desenho e implementação de políticas públicas. 

Na língua portuguesa os termos política (em inglês politics) e política pública (em inglês policy) confundem-se, carregando um fardo cada vez mais negativo, o peso da política. Será seguro afirmar que, como a maioria da população, os coletivos e suas comunidades têm cada vez mais dificuldade em distinguir os dois conceitos, valorizando apenas a política por detrás da política pública. A pandemia, com seus dados e modelos, vem abrir uma possibilidade de fazer essa distinção de forma mais efetiva, criando condições para, em Brasília, alavancar os coletivos uns furos na cadeia de tomada de decisão.